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Pretos quanto podem sê-lo, ao cimo dos telhados
os gatos chegam aos pares, numa noite melancólica.
Da ponta das caudas finas pende-lhes
um estreito crescente lunar que parece enevoado.
“Miau, boa-noite”.
“Miau, boa-noite”.
“Uá, uá, uá” (o bebé a chorar).
“Miau, o homem desta casa está de cama.”
Sakutaro Hagiwara, tradução, a partir da versão em inglês, da arcadajade
foto de Alex Howitt
Minnow, go to sleep and dream,
Close your great big eyes;
Round your bed Events prepare
The pleasantest surprise.
Darling Minnow, drop that frown,
Just cooperate,
Not a kitten shall be drowned
In the Marxist State.
Joy and Love will both be yours,
Minnow, don’t be glum.
Happy days are coming soon–
Sleep, and let them come…
fotografia de Alexey Menschikov
The fog comes
on little cat feet.
It sits looking
over harbor and city
on silent haunches
and then moves on.
Carl Sandburg
Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem.
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa.
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
Manuel António Pina
Nós, gatos, já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres.
Enriquez - Bardotti - Chico Buarque, in Musical Infantil Os Saltimbancos, 1977
fotografia de Boyana Petrova
Fotografia de Daniel Mordzinski
No início, Deus criou o gato à sua imagem.
E achou que estava bem.
E de facto estava mesmo bem.
Mas o gato era preguiçoso,
Não queria fazer nada.
Então, alguns milhares de anos mais tarde, Deus criou o homem,
Com o fim único de servir o gato,
De ser seu escravo até ao final dos tempos.
Ao gato, Deus tinha dado a indolência e a lucidez;
Ao homem, concedeu a neurose, o dom da bricolage e a paixão do trabalho.
E o homem entregou-se-lhes alegremente.
Durante séculos, ergueu uma civilização toda baseada na invenção,
na produção e no consumo intensivos.
Civilização com uma única e secreta finalidade:
proporcionar ao gato conforto, morada e abrigo.
Jacques Sternberg, tradução da arcadajade
VÊ SE TE LEMBRAS
Era ainda cedo
vivíamos em tendas
só tínhamos
o que sabíamos transportar:
duas pedras de calcite
numa bacia de água e sal,
o cacto aéreo, desenraizado
como nós,
um jovem gato,
as lembranças guardadas
na bolsa de patchwork
que tínhamos costurado.
E o coração nómada
nómada nómada -
intimorato.
Soledade Santos, Sob os teus pés a terra, Artefacto, 2010
fotografia de Ebru Sidar
Senhores silenciosos dos telhados,
sombras dotadas de corpo,
lânguidos e alheios,
menos em março:
gatos.
Em março são provisoriamente animais
e depois regressam à inalcançável altura da sua solidão.
Luciano Moreira, in DiVersos 18, Poesia e Tradução, Fevereiro, 2013
pintura de Jean-Jacques Bachelier
Dá-se ares de marquês,
seu miar não quer conversa;
é gato, mas não maltês
o altivo bicho persa.
Não atende a quem o chama,
nem que vista uniforme;
de dia só quer a cama
onde à noite a dona dorme.
É em tom de ameaça
de audaz aventureiro,
que D. Fuas vai à caça
em noites de nevoeiro.
Parece um rei embuçado
com seu ar misterioso;
só falta cantar o fado,
a D. Fuas, o Formoso.
António José Queirós
Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).
De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''
''Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.''
''Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?
Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - E o comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passas de um gato.
Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''
Manuel Maria Barbosa du Bocage