Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Romance de D. Tico

por arcadajade, em 31.10.05



D. Tico de Calatrava
era gato siamês
e fidalgo português
de que pouco se ralava.
Dos olhos azuis vivia
e de muita alegria
em telhados animada
por vidas loucas e muitas
de belas fêmeas fortuitas
numa vida desregrada.




Se saía sempre entrava
pela porta dos felinos,
idos mortos inquilinos
que a dona lhe lembrava
se das horas se esquecia,
passeando noite e dia
sabe-se lá por que mundo.
D. Tico ouvia calado
os exemplos do passado
com o prato já no fundo.




Dava um giro pela casa
enquanto a dona ia atrás,
não mais o deixava em paz
com a voz em viva brasa:
para sempre desse tréguas
às botas de sete léguas
e fosse calçar sapatos
iguais aos de toda a gente,
comum, sério e decente
como os falecidos gatos.




Os defuntos enxergava
em retratos mui vulgares,
dos que há em todos os lares
― muito a patroa os chorava!
O exemplo deles seria
uma vida de agonia,
e deitado no sofá
repousava das fadigas,
digeria leite e migas,
que uma vida apenas há.


   

Dizia-se que a morte
os colhera ali na estrada,
ainda que sossegada
lhes fora a vida sem sorte.
Deles não ouvira história
ou quem guardasse memória,
nem sequer ali por perto.
«Há muitos gatos», pensava
D. Tico de Calatrava
«cuja vida é um deserto.»




Contudo, naquele dia,
não se sabe por que azar
a dona pôs-se a falar
e, planeando, dizia:
«Hei-de comprar-te uma trela,
é preciso ter cautela.»
Ser um gato igual a um perro?
D. Tico de Calatrava
nada pior futurava
que tamanho e tão grosso erro.




E logo se tornou doce
uma vez ido janeiro,
roçava-se mui matreiro
por qualquer saia que fosse.
Com a dona se deitava,
com a voz dela acordava,
se saía logo vinha,
era amigo da patroa,
fazia-lhe a vida boa,
nunca a deixava sozinha.

Gato dá ponto sem nó?
D. Tico de Calatrava
era gato e nunca o dava
e nele pensava só.
Outro janeiro viria,
à noite segue-se o dia
e cuidar-se do futuro
mil desgostos sempre evita
e guarda o prazer e a grita
das belas gatas no escuro.




Não fosse ele cavaleiro
da ordem de Calatrava,
nem o de Eça lhe chegava,
de Sião era o primeiro!
Gato puro e nada casto,
pouco havia mais nefasto
que a metamorfose em cão,
e nos jardins da cidade,
mesmo cheio de vontade,
alçar a perna é que não.




E por honra estava pronto
para o que desse e viesse,
e a patroa que trouxesse
a sua ideia a confronto.
Não queria porém guerra
que somente a vida emperra.
Algum jeito se arranjaria
de dar a volta ao assunto,
não queimaria o bestunto
nem lhe causava agonia.




Eis senão quando uma tarde
a dona vem com a trela
tão brilhante e amarela
que até se sentiu cobarde
. «Bis, bis, bis, Tico, meu doce,
vem ver o que a mamã trouxe»,
chamava a dona, contente.
D. Tico não acordava,
nem sequer pestanejava
perante o chamado insistente.



«Bis, bis, bis; bis, bis; bis, bis»,
não desistia a patroa
da intenção pouco boa
de lhe dobrar a cerviz.
Encontrou-o ― humilhação! ―
escondido no fogão.
«Mas que fazes tu, ó Tico?
Sai-me daí para fora
vamos já os dois embora,
isso é manha e apaparico.»


E quando nele pegou,
vendo que não se movia
e morto lhe parecia,
logo com ele gritou:
«Passas a vida a dormir,
pareces um grão-vizir,
um passeio faz-te bem.»
E logo lhe pôs a trela:
«Olha que bonita é ela»,
e teimava: «Anda, vem!»


Mas não se mexia o gato,
tinha o corpo quente e mole.
«Teria apanhado sol?»
E com o bico do sapato
ficou a ver se despertava
D. Tico de Calatrava.
Ele, qual quê? moita, nada!
A patroa, muito aflita,
desatou em tal choro e grita
que acordava uma manada.




Logo veio a vizinhança
e entre ela a D.ª Maria,
famosa por bruxaria
e males sem esperança.
Estava tudo abismado
com o gato assim atado:
«Mas que lhe fez a senhora?
Quer prender gatos à trela,
ainda mais na Pascoela?
Valha que sou capadora!




Ti Rosa, vá-me à cozinha
(já se viu um gato-cão?
Isso é pior que maldição),
Ti Rosa, vá-me à cozinha
e traga a faca mais fina,
essa nunca desafina.
Sou mestra a capar leitões,
saberei capar um gato,
e não esqueça o borato,
desinfecta as incisões.»




Enquanto o gato isto ouvia
de um salto se libertava,
por sobre a mesa voava
e quem contou não mentia:
Num ai galgou a janela,
atrás de si indo a trela.
«Um gato tem sete vidas,
mas não lhe posso valer,
vejo foices a correr
pela estrada, desabridas.»




E avisou D.ª Maria:
«Não se cheguem à janela
nem acendam uma vela.»
E D.Tico já morria
sob um carro de suínos
que ao invés de alguns felinos
levam uma vida escrava.
E assim termina a história
de um siamês que foi glória
e tantos filhos deixava.




Mais um retrato ficava
na estante da biblioteca
e de felinos ― eureka! ―
à senhora já chegava.
Arranjou um cão lulu
e num berço de bambu
mui eléctrico o embalava,
mas se por algum livro ia
do retrato só lhe ria
D. Tico de Calatrava.



© as musas esqueléticas

Autoria e outros dados (tags, etc)

10:33

O Gato das Botas

por arcadajade, em 18.10.05

Image hosted by Photobucket.com

Image hosted by Photobucket.com Ilustrações de Gustave Doré

Autoria e outros dados (tags, etc)

00:00

A pena

por arcadajade, em 05.10.05

dev-smp128.jpg

     Vivia só com os gatos, deixara de parte a vida c om os outros seres humanos e, todas as noites, aquela senhora, antes de adormecer, metia no seu leito um livro, um objecto ou uma carta, para reencontrar, em seus sonhos, as coisas que amava. Um dia, sobre um dos travesseiros, poisou uma pena que um jovem amante lhe oferecera.
     E o rapaz sonhou que a matava.

Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002

Autoria e outros dados (tags, etc)

15:03