Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O odor a gerânios depois da rega fez parar Alain com a garganta contraída de emoção. Inclinou-se, abriu, às apalpadelas, o cesto, e devolveu a gata à liberdade. - Saha, eis o nosso jardim... Sentiu-a deslizar para fora do cesto e, em nome da imensa ternura que tinha por ela, deixou-a ir, apenas entregue a si própria. Restituiu-lhe, dedicou-lhe a noite, a liberdade, a terra permeável e doce, os insectos que velavam, e os pássaros que continuavam a dormir.
Colette, Saha, a Gata, Livro-Carta, Colares Editora
O gato de rilke saltava-lhe para o colo nas tardes
de inverno, em duíno, enquanto ele escrevia
as elegias. Miava, como um anjo, e rilke traduzia
essa música em estrofes que, depois, recitava,
de janela aberta para o mar. A princesa de thurn e taxis,
então, chamava o gato; mas ele não ligava à dona,
e preferia saltar para o armário, onde ninguém
o ia apanhar. Rilke constipava-se; mas as elegias nada
contam do que se passava nessas tardes de duíno,
nem os incidentes domésticos, nem os problemas de
saúde. Têm, apenas, uma influência do gato: o seu
dorso negro, e os miados que dava, enquanto rilke
escrevia. Um gato pode, com efeito, inspirar poemas
de fôlego, como esses de duíno. É verdade que o
castelo já não existe; e que o vento já não entra
pela janela em que rilke se constipou. De resto, não
sei se é possível, ainda, alguém recitar poemas por
uma janela aberta, para cima do mar que tem a cor
da tempestade. Os deuses não moram, hoje, em nenhum
céu; nem os anjos gritam por intermédio de um gato A
razão, a lógica, o interesse, eis os motores do
quotidiano; e a única coisa que um gato pode fazer,
então, é passear no meio deles, de cauda encolhida,
sem nenhuma princesa de thurn e taxis a enxotá-lo,
de cima do armário, para não distrair o poeta.
Nuno Júdice, Cartografia de Emoções, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001
Olhos atentos tentando entender,
absolutamente parada, a cabeça tensa,
as orelhas espetadas como se pudesse ouvir
as palavras que eu ia escrevendo,
a pequena gata seguia cada um dos meus gestos
como se fossem incertos insectos
correndo inquietos sobre o papel.
Os gatos velhos e os homens jovens
não se interessam por coisas fúteis como
palavras escrevendo e gatos atentos,
têm pouco tempo, sobretudo por dentro.
Manuel António Pina, Os Livros,Assírio & Alvim, Lisboa, 2003
Carta de jogar alemã, c. 1430 d.C.
Katzen-Kunst-Museum, Estugarda
O Gato Mau imprime a marca da sua pata no manto da Rainha Branca, usando o rouge dela.
Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola, tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares, gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente terminado,
camina solo y sabe lo que quiere.
El hombre quiere ser pescado y pájaro,
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.
No hay unidad
como él,
no tienen
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el topacio,
y la elástica línea en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las monedas de la noche.
Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin patria,
mínimo tigre de salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado pie del gato.
Oh fiera independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta
de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres misterio,
todo el mundo te sabe y perteneces
al habitante menos misterioso,
tal vez todos lo creen,
todos se creen dueños,
propietarios, tíos
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.
Yo no.
Yo no suscribo.
Yo no conozco al gato.
Todo lo sé, la vida y su archipiélago,
el mar y la ciudad incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus extravíos,
el por y el menos de la matemática,
los embudos volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del cocodrilo,
la bondad ignorada del bombero,
el atavismo azul del sacerdote,
pero no puedo descifrar un gato.
Mi razón resbaló en su indiferencia,
sus ojos tienen números de oro.
Pablo Neruda
Oda al gato