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passa uma musiquinha triste
na rádio a gata dorme o aconchego
da melodia casa vazia
uma cesta e o girassol
é quanto lhe basta para ser feliz
eu não me contento com tão pouco
um girassol a musiquinha
uma cesta tem mais do que eu
a gata não espera nada e tem
me a mim também
Soledade Santos
Num distender
de flexível ronronar
estica-se o gato
no furtado telhado
tépido do sol tardio
ou à grelha cinzelada
da lareira
E se
é abandonado
à languidez do colo
da morna dona ocasional
imprime a felina unha
em ingénua coxa.
Rita Taborda Duarte, in DiVerso nº 4, Inverno-Primavera de 2000
Quando
a finíssima pupila e vertical
fixa felina já distraída
mente
a cauda atenta ao movimento
quando tudo é nada mais
que imóvel e fingida lentidão
o Gato
é sobretudo um animal poético
Rita Taborda Duarte, in DiVerso nº4, Inverno-Primavera de 2000
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa, Cancioneiro
Em abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhora dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.
Eugénio de Andrade
Derrama-se a lua -
Pirilampos cor de mel
Nos olhos do gato.
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Luar de Janeiro -
A deusa empalidece
Na teia de névoa.
Os gatos entoam longos
Cânticos de sedução.
Carlos Alberto Silva,
Um vento glacial sopra
Os olhos dos gatos
Pestanejam
***
Tão esguia a gata
Não da falta de cevada
mas do amor
***
Através da racha na lareira
o gato
vai ter com a amada
Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003